Onde mora a criatividade? - Rua vs academias
«Saudades desse tempo em que os carros ocupavam de forma abusiva os nossos campos de futebol» José Santana
Confesso, também, que sou um eterno saudosista no que toca a vivências futebolísticas.
Como quase todos os jovens da minha geração, talvez a última que tenha experienciado a pressão deste magnífico palco, foi lá, na rua, que passei muitas horas da minha formação.
O futebol de rua carateriza-se, de forma geral, por ser um jogo que ocorre num ambiente que potencia a liberdade de ação, onde o improviso é essencial. As condições não são as mais favoráveis, mas levam à necessecidade de adaptações constantes por partes de quem as pratica.
Desprovido de feedbacks que condicionam, muitas das vezes, negativamente os jogadores, o futebol jogado na rua é genuíno e promove a autonomia. Terá também algo de tático, o que não existe certamente é a limitação da liberdade de decisão.
Este é um contexto que estimula a ativação e o desenvolvimento da criatividade.
É esta criatividade que escasseia em Portugal. Um jogador criativo, irreverente e talentoso, que nos encha de expetativa a cada jogada, que mantenha o suspense e que assuma o risco sem medo de falhar.
As particularidades da sociedade atual, levam, a que cada vez seja menos habitual, assistirmos a jogos desta natureza. A tecnologia, invadiu as agendas dos jovens e o futebol aprende-se nas academias/ escolas de formação.
São estes fatores, que servem para relembrar e descrever a falta que este tipo de "jogos" fazem durante as etapas de formação de um jovem. Na ânsia de voltar a ver este tipo de jogadores brilhar nos relvados portugueses, tem surgido um debate que assenta na vontade de trazer as vivências da rua para as academias.
Existe uma percepção de que o trabalho de quem forma, tem sido perturbado pela exigência da vitória, da necessidade de resultados, que são impostos pelos clubes ou mesmo pelos próprios treinadores.
Quem treina ou assiste a jogos de formação, pode facilmente observar, a constante guerra que existe, nos bancos de suplentes. O jogo, joga-se ali, numa disputa de berros que guiam constantemente a ação dos jovens.
Este é o problema que atormenta os responsáveis por encontrar novos talentos e as pessoas que se preocupam com o futuro do futebol português.Retirar a aprendizagem de conhecimentos táticos em etapas iniciais da formação, parece ser a solução encontrada por quem tem pensado o assunto. Não me parece que esse seja o problema.
Reconheço a importância que a rua pode ter tido para imensos futebolistas de top, no entanto não posso aceitar que o ambiente criado por quem forma seja menos potenciador de jogadores talentosos.
O "jogar à bola" não pode ser mais enriquecedor que o "jogar futebol". O "jogar à bola" não pode ser a melhor forma de ensinar alguém a jogar futebol.
O futebol é um jogo tático, quem o quer aprender tem de o entender. Não podemos negar a importância de alguns princípios fundamentais na questão da aprendizagem do futebol.
Cabe aos treinadores de formação fazer uma gestão da transmissão de conteudos táticos, mas nunca os ingorando.
As academias dispõem de condições muito mais favoráveis que o futebol de rua. Balneários, campos com marcações, balizas adequadas, diversos materais que enriquecem o treino e, fundamentalmente, treinadores. Se este ambiente não é mais enriquecedor para potenciar talentos e despoletar criatividade então é porque quem treina o faz de forma errada.
O processo de treindo deve incluir exercícios que potencializem a descoberta, que contenham diversas possibilidades de alcançar os seus objetivos. Desta forma garantimos que os jogadores são obrigados a pensar o exercício e criar soluções, não o realizando de forma mecanizada.
Cabe-nos a nós, treinadores, criar "jogos" para ativar e treinar habilidades técnicas, promover a criatividade sem desvirtuar o jogo. A criatividade tem de morar, obrigatoriamente onde existe talento, tem de aparecer onde existe potencial, tem de surgir a cada exercício, em todos os treinos.
Se um miúdo inventa, recria e aumentas as suas qualidades na rua, sem ajuda de alguém formado para o orientar, então, contando com um treinador competente, deverá elevar muito mais, todas as suas características.
Não acho que exista a necessidade de recriar o futebol de rua, se o treino for pensado desta forma. A rua, apresenta, definitivamente, um contexto único e enriquecedor mas as academias e os clubes, tem todas as condições para fazer melhor.
A resolução da situação, passa por retirar dos cargos de treinador, quem comanda os seus formandos, como se de um jogo de computador se tratasse. E esse, já é outro problema.
Bruno Fidalgo